|
Extração do capítulo: Atribuindo Responsabilidade da Obra: República de Crianças Sobre experiências escolares de resistência de Helena Singer
82 ATRIBUINDO RESPONSABILIDADE
" Uma História de Resitência
Depois de Yasnia Poliana, a primeira escola livre de que se tem notícia no
Leste Europeu é o Lar das Crianças. O orfanato Lar das Crianças foi fundado
pelo médico Janusz Korczak e pela professora Stefa Wilczinska no dia 15 de
abril de 1912, em uma rua habitada por judeus pobres de Varsóvia (Polônia). O
Público alvo deste orfanato eram as crianças judias carentes e os fundos do
empreendimento foram conseguidos com os judeus ricos do país. Apesar de ter
sido fundado em 1912, o Lar das Crianças só entrou de fato em funcionamento em
1914. O verdadeiro nome de Korczak era Henryk Goldshmid, nascido em 1878,
filho de judeus ricos e assimilados. Avesso à disciplina escolar, Henryk passou
a infância e adolescência resistindo às regras institucionais e devorando
obras da literatura universal, e acabou por fundar um círculo de ?Livre
Pensamento?, com seus amigos, cujas discussões giravam sobretudo ao redor do
socialismo e do nacionalismo. Sonhava ser escritor, mas por insistência de seu
pai inscreveu-se na faculdade de medicina. Aos vinte e dois anos, foi estudar em Zurique (Suíça), onde conheceu Stefa Wilczinska, filha de uma família judia 83 aristocrática de Varsóvia, que
estudava pedagogia. Influenciado por ela, Henryk começou a freqüentar a
faculdade de pedagogia. Ali entrou em contato com as obras dos pensadores da
Escola Nova, que estava muito em voga por toda a Europa naqueles tempos,
tendo-se desenvolvido em diversas linhas, já bastantes afastadas do pensamento
de Tolstoi, e mais direcionadas para a formulação de métodos que
incentivassem o aprendizado. Estes pensadores muito influenciaram o jovem
Henryk, que, entretanto, não conseguiu identificar-se completamente com eles.
Depois de três meses, Henryk mudou-se para Viena (Áustria), onde
permaneceu por um ano. De volta para Varsóvia, foi morar com uma família
pobre, atuando como professor de suas crianças. Com a morte do pai, Henryk
voltou para a casa de sua mãe, a fim de cuidar dela e concluir o curso de
medicina. Nesta época conseguiu publicar seus primeiros livros, nos quais
narrava suas experiências com as crianças pobres, assinando-os como Janusz
Korczak, nome que não o identificava como judeu, sendo mais de acordo com a sua
postura assimilacionista. Korczak começava então a ficar conhecido no mundo
literário. Stefa, por sua vez, concluiu seus estudos de pedagogia na Suíça e
voltou para Varsóvia, onde alugou duas salas e instalou um lar para crianças
pobres. Korzac foi trabalhar neste orfanato como médico. A partir do
reencontro, decidiram construir o Lar das Crianças. Korczak viajou então para Suíça,
Itália, Holanda e Dinamarca a fim de conhecer os orfanatos destes países,
voltando muito decepcionado com o procedimento rotineiro e a construção dessas
instituições que, a seu ver, assemelhavam-se a prisões. Por isso, Korczak e
Stefa decidiram projetar eles mesmos o ambiente do orfanato. Quando finalmente o
Lar das Crianças entrou em funcionamento, Korczak foi chamado para servir o exército
na Primeira Guerra Mundial.
Durante
quatro anos, Stefa dirigiu sozinha o estabelecimento. 84 Ao regressar, Korczak assumiu suas funções no Lar e, tornando-se
nacionalmente conhecido, acabou sendo convidado pelo Marechal Pilsudski que
durante vinte anos dirigiu os destinos da Polônia a auxiliar na direção
de outro orfanato em Prushkov. Na mesma época, foi também convidado para
dirigir uma edição para crianças de um jornal popular e contar histórias
infantis em uma radio. Desenvolveu todas essas atividades paralelamente ao Lar,
além de escrever vários outros livros. Com o fortalecimento do anti-semitismo em toda a Europa, a situação
para os judeus também na Polônia foi ficando cada vez mais difícil.
Primeiramente, os estudantes judeus foram expulsos das universidades e muitos
jovens começaram a emigrar para Israel. Em 1936, viajou para lá e, muito bem
impressionado com os kibutzim (propriedades agrícolas coletivas), pensa
em mudar seu orfanato para aquele país. Mas a invasão nazista na Polônia, que
causa a eclosão da Segunda Guerra Mundial, no dia 1o de Setembro de
1939, impede a realização dos planos de Korczak. Ao mesmo tempo que aumentava
a penúria para os judeus da Polônia, disseminavam-se também os progrons
(atentados populares contra os descendentes dessa religião), impedindo que
Korczak nem sequer levasse suas crianças para passeios fora da cidade. Em 1940,
o orfanato que já havia sobrevivido a dois progrons perdeu o
comitê que os sustentava. Em 1942, a Gestapo ordenou sua transferência para
uma casa pequena e suja, no gueto de Varsóvia. Ali Korczak usou toda a sua energia, talento e influência para
conseguir alimentos e medicamentos necessários para a sobrevivência das crianças.
Devido a seu prestígio, o educador obteve propostas de escapar do gueto, mas
recusou-as, preferindo ficar com suas crianças. No dia 10 de agosto de 1942,
Korczak foi à frente delas, caminhando como uma procissão, para os trens que
os levariam para as câmaras de gás. 85 Divergências com a Escola Nova e Escolha por Pestalozzi Conforme já foi mencionado, Korczak entrou em contato com as últimas descobertas da educação durante sua estada na Suíça. Os pedagogos mais citados naqueles tempos eram o francês Ferrière, o americano Dewey, o russo Makarenko, o inglês Russel, o belga Decroly e a italiana Montessori, os últimos dois médicos como Korczak. Em linhas gerais, estes educadores desenvolviam métodos de ensino bastante influenciados pela psicologia - sobretudo de Piaget - que almejavam tornar o aprendizado mais interessante e adequado às varias etapas do desenvolvimento das crianças. Afastavam-se dos métodos tradicionais ao estudarem a psicologia infantil e levarem em consideração as características particulares desta fase na construção do processo educativo. Mas afastavam-se também de Rousseau e Tolstoi, criticando o caráter espontaneísta nas propostas destes pensadores. Os pedagogos mais conhecidos da primeira metade do nosso século preferiam associar o ensino ao trabalho e aos jogos, procurando assim dar um sentido ao aprendizado. Korczak partia da mesma crítica aos métodos tradicionais que esses pedagogos faziam, mas sentiam que eles se esquivavam de questionar a essencia da educação, quando passavam a se dedicar apenas ao desenvolvimento de atividades didáticas específicas, que atraíssem o interesse infantil. o médico polonês foi encontrar então mais afinidade com o pensamento de um educador da passagem do século XVIII para o XIX, Johann Heinrich Pestalozzi. Pestalozzi atuou na trilha aberta por Rousseau, mas distingui-se 86 dele por seu filantropismo e sua praticidade, adquirida nas quatro instituições que dirigiu na Suíça, entre 1798 e 1825, sempre voltadas para as populações carentes. Democrata, Pestalozzi tinha como ponto de partida a aposta na "bondade natural" e a atenção para a personalidade de cada criança. Sua hipótese de que toda criança possuía um "bom fundo" sugeria urna educação não repressiva, não firmada sobre o medo. Sua pedagogia previa o acompanhamento do interesse e da curiosidade infantil. A seu ver, o caminho da busca da verdade e da felicidade é lento e reduzido, devendo ser percorrido a partir do que está mais próximo e seguindo-se sempre as leis da natureza. Quando isto não é respeitado, como nas escolas, os homens lançam-se num caos infinito de palavras e discursos desconexos. Este caminho artificial da escola, que coloca toda uma série de palavras antes da natureza livre, lenta, cuidadosa, educa o homem no brilho falso, que dissimula a carência de força natural íntima e satisfaz a tempos como o nosso século (Pestalozzi, in Luzuriaga, 1946: 24). Respeitar a natureza do desenvolvimento humano significa, antes de tudo, dissipar do processo educativo qualquer espécie de mau-trato bem como os esforços excessivos. É preciso conceder à natureza o tempo que ela necessita, com tranqüilidade. A ansiedade pela 'mera sombra da verdade" contida na conceituação desinteressante e impraticável afasta o homem dos caminhos da natureza. Como conseqüência temos um adulto tosco cuja opinião é inteiramente formada pela parcialidade dos professores.
A força da natureza - ainda que conduza irresistivelmente à verdade - não
é inflexível em sua direção. ( ... ) Se 87 a ordem no modo de ensinar da natureza fosse coercitiva e inflexível, criaria a unilateralidade, e sua verdade não cairia doce e livremente na plenitude do ser da humanidade (Pestalozzi, in Luzuriaga, 1946: 25). A educação deve formar o homem para o sossego interior, para que ele possa adquirir a sabedoria humana, que é a tolerância e a sobriedade em relação à sua situação e a seus prazeres. Não poderíamos considerar Pestalozzi um educador da escola democrática, uma vez que ele não propunha a participação das crianças nas decisões das instituições que dirigiu e tampouco a liberdade delas em optar por assistir às aulas ou não. Sua filosofia é muito mais marcada pelos ideais do cristianismo do que do socialismo. Entretanto suas idéias devem ser situadas numa linha de continuidade que vai de Rousseau a Korczak, já que a preocupação com a felicidade e a aposta na humanidade o colocam na contramão da vertente mais utilitarista que tomou conta da educação moderna. As Idéias de KorczakO médico Janusz Korczak tinha dificuldades em separar as funções de educador da alma e educador do corpo. Pro punha-se a aliviar os sofrimentos físicos e psicológicos das crianças, conhecendo-as profundamente. Considerava a infância uma chave para a compreensão da humanidade, não um período de transição, mas um momento absoluto, com sua beleza própria. Vocês dizem: "Cansa-nos ter de privar com crianças". Têm razão. Vocês dizem ainda. "Cansa-nos, porque precisamos descer ao seu nível de compreensão'. Descer, rebaixar-se, inclinar-se, ficar curvado. Estão equivocados. 88 Não é isto o que nos cansa, e sim, o fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das crianças. Elevar-nos, subir, ficar na ponta dos pés, estender a mão. Para não machucá-las (Korczak, 1981: 11). Seu princípio fundamental era de que o educador não deveria sobressair-se em relação ao educando, deveria sempre levar a sério sua opinião, seu ponto de vista, porque desfazê- lo seria doloroso para a criança, oprimiria sua personalidade e seu amor próprio. Em vez de mandar na criança, é preciso dar-lhe a oportunidade de se convencer, com base em suas experiências, numa atmosfera de confiança. A criança cede às exigências do adulto mas, ao mesmo tempo, forja uma reação, e fica à espera de uma oportunidade para se libertar desse sofrimento. Korczak distancia-se de Rousseau e Pestalozzi ao reconhecer os maus instintos da criança. A seu ver, não há como exigir a perfeição dos seres humanos, a educação pode somente acalmar e abrandar esses instintos, sem jamais conseguir eliminá-los. Mas se o adulto oprime a criança, desrespeita sua individualidade com castigos e insultos, incentiva então esses maus instintos. Na crítica aos métodos tradicionais de ensino que fomentam esses maus instintos, Korczak associa o trabalho do professor aos do vigia e do pastor e a decadência da escola à da ciência: O educador é um zelador que vigia os muros e os móveis,
garante que haja silêncio na área do recreio, que os ouvidos e o chão estejam
bem limpos, é o pastor que toma conta do gado, impedindo que invada terrenos
alheios e atrapalhe o trabalho ou o despreocupado lazer dos adultos (... ) A
escola: um pobre comércio de medos e ameaças, butique de bugigangas morais,
botequim onde é servida uma ciência desnaturada, que intimida, confunde e
entorpece, em vez de despertar, animar e alugar (Korczak, 1986: 97). 89 Mesmo os que procuram escapar deste esquema, acabam adotando a atitude negativa de elaborar truques ou artifícios para aproximar a criança do educador, em vez de procurar compreendê-la na sua individualidade. Korczak desejava propiciar-lhe a liberdade para o desenvolvimento pleno,da sua natureza e permitir assim que atingisse a felicidade. Korczak proclamava a criança como um ser racional, que compreende bem suas necessidades, dificuldades e fracassos. Isto significa que ordens despóticas e leis dogmáticas não são adequadas ao ambiente educativo, sendo preferível a compreensão e a confiança. Acreditava que com a justiça para com a criança, seria lançada a base para a justiça social; se a criança fosse criada num ambiente em que os adultos fossem justos com ela, sem oprimir sua liberdade, quando crescida, ela também seria justa com seu semelhante e livre dos complexos que impulsionam o sentimento de vingança. O
trágico final de Korezak e suas crianças leva a pensar que as nossas
sociedades estão muito distantes deste ideal de justiça, em que prevaleceria a
felicidade. O artigo "A Educação Após Auchwitz" parece ter sido
feito como um réquiem para o Lar das Crianças. Nele, Theodor Adorno afirma que
a autonomia só pode ser realizada se as poucas pessoas que são a seu favor
trabalharem energicamente para fazer da educação uma ação pela contradição
e pela resistência, mediante a crítica imanente. É uma luta constante contra
o mecanismo de imaturidade que impera modernamente. Nenhuma democracia pode
sustentar-se abertamente contra este tipo de iluminação. Segundo o autor, o
desejo de transformação drástica em qualquer campo é imediatamente exposto
à poderosa força do status quo e parece condenado à impotência.
Qualquer um que possua este desejo precisa converter sua impotência em fator de
mudança. Ninguém enquadra-se melhor do que o educador judeu Janusz Korczak
neste perfil idealizado por Adorno. 90
O
Lar das Crianças Fico imaginando que sou um professor. Reúno uma porção de pessoas e digo: "É preciso construir uma boa escola. Uma que não seja apertada para que a gente não precise se empurrar, pisar um no outro, esbarrar". As crianças chegam à escola, e eu pergunto: "Adivinhem o que vamos fazer?" Um responde: "Vamos fazer uma excursão". Um outro diz: "Vai ter projeção de filmes". Falam isso, falam aquilo. E eu: "Não, não. Tudo isso vamos ter também, mas, além disso, teremos coisa mais importante". E só quando tiverem se acalmado anunciarei: "Vou construir uma escola para vocês' (Korczak, 1981: 11). Foi com o firme objetivo de criar uma escola adequada às crianças, um ambiente no qual pudessem ser felizes, que Korczak e Wilczinska construíram o Lar das Crianças. Algumas das duzentas crianças que ali foram morar provinham de lares destruídos e ainda mantinham contato com familiares, outras haviam conhecido somente as ruas, e os dois educadores tornaram-se suas verdadeiras famílias. A casa acolhedora contava com salas de estar confortáveis, salas de refeições, banheiros, biblioteca, dormitórios claros para as crianças e dois dormitórios para os seus diretores - o de Korezak ao lado do dos meninos e o de Stefa, ao lado do das meninas. Havia ainda um "canto íntimo", uma sala silenciosa com quadros na parede e um aquário, destinada aos estudos e à meditação. Este ambiente acolhedor foi, no entanto, perdido quando a Gestapo transferiu o orfanato para a pequena casa com quartos sujos, apertados e sem mobília, no gueto de Varsóvia. Korczak e Wilczinska faziam com que o seu orfanato funcionasse como uma autêntica República de Crianças. Elas 91
realizavam os principais trabalhos, de forma rotativa, e assumiam o governo mediante duas instituições básicas: o Parlamento e o Tribunal. O Tribunal objetivava proteger todo habitante do orfanato e seus direitos, notadamente os mais fracos e menos espertos. Visava também preservar a ordem e a higiene, cuidando dos pertences da propriedade. Priorizava o perdão ao infrator mas previa o reconhecimento da culpa e a penalidade que graduava da publicidade da infração à expulsão do orfanato. Para chegar a alguma conclusão sobre um caso, o Tribunal valia-se de investigações, interrogatórios e pesquisas. A escolha dos juizes (todos crianças) era feita por sorteio e o cargo era provisório. Stefa também fazia parte do Tribunal, como secretária. O Parlamento compunha-se de vinte deputados eleitos entre todos os membros do orfanato, Korczak como presidente honorário e um secretário. Estes escolhiam entre si uma Comissão Legislativa de cinco membros e um vice-presidente para compor o Senado. O Parlamento decidia sobre todas as normas da instituição, que eram regularizadas pela Constituição. A República contava ainda com dois jornais. O primeiro, chamado A Pequena Supervisão, era patrocinado por Korczak, que pagava às crianças por sua colaboração e, além da participação dos membros do Lar, o jornal recebia ainda cartas de crianças de toda a Polônia. O jornal oficial, no entanto, era O Semanário, que trazia todos os acontecimentos importantes ocorridos durante a semana na República e colaborações de professores e alunos, sendo lido em uma sessão pública todos os sábados. O meio mais imediato de circulação de
informações, contudo, eram as listas penduradas pelo prédio. Nelas se
inscreviam os interessados em participar de alguma atividade especial - um
passeio, a reza, o madrugar etc. - e os que queriam realizar alguma 'transação
comercial". 92 Além disso, havia uma lista especial intitulada "Agradeço e Peço Perdão", onde os que queriam podiam agradecer a alguém ou desculpar-se. Mas este não era o único recurso para os arrependimentos. Havia também o sistema de apostas. Se alguma criança queria livrar-se de algum mau costume, como falar palavrões, brigar, acordar tarde etc., procurava particularmente Korczak para apostar com ele que seria capaz de mudar sua conduta por um certo tempo. Se conseguisse, ela mesma avisava Korczak e ganhava balas ou algum dinheiro extra. Mas quando a conduta de alguém (professor ou aluno) incomodava os outros e este alguém não mostrava nenhuma iniciativa para modificar-se, a República podia valer-se do "plebiscito". O plebiscito era realizado a qualquer momento para se saber qual a opinião geral sobre algum cidadão. Na base destes plebiscitos, formavam-se diversas categorias positivas e negativas como "rei dos amigos", "amigo simpático", "colega", "residente", 'residente apático", "hóspede indesejável", "recém-chegado suspeito", entre outras. No caso específico dos professores, estes eram escolhidos por Korczak, que tinha como um de seus critérios a 'incompetência" destes para alguma disciplina específica, justamente a que deveriam ministrar. Korczak acreditava que uma pessoa despreparada iria sempre estudar, pesquisar e esforçar- se. Mais do que ensinar, a função realmente importante do educador no orfanato era observar as crianças e fazer anotações sobre elas para discutir com Korczak ao final do dia. O educador devia estar sempre a certa distância da criança e esperar que ela lhe pedisse ajuda ou perguntasse algo. As crianças não eram obrigadas a assistir às aulas, nem mesmo alfabetizarem-se. As maiores eram tutoras das recém-chegadas, o que significava que tinham de juntar material sobre seus pais, suas casas e o ambiente em que viveram, além de anotar cada acontecimento importante no novo 93 ambiente, a fim de criar um acervo de conhecimentos sobre o novo membro. O monitor era ainda encarregado de proteger o seu tutelado contra possíveis abusos dos veteranos. A língua falada no orfanato era o polonês e esta foi uma exigência dos judeus assimilados mantenedores da instituição. No entanto, muitas das crianças tinham como língua materna o iídiche ou o hebraico e por isso havia cursos des- tas línguas, evitando que as crianças as esquecessem. Os verões anteriores ao confinamento no gueto eram passados nas colônias de férias de Gotzlavek, lugar cheio de bosques, onde as crianças ficavam a maior parte do tempo ao ar livre.
As Associaçoes Janusz Korczak As idéias e a vida de Korczak inspiraram a formação de uma associação internacional, a "Janusz Korczak Intemational Association", com sede em Varsóvia, que se espalhou pelo mundo: Alemanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Israel, Japão, Rússia, Suíça e Brasil entre outros. O principal objetivo destas associações é propagar o conhecimento sobre vida, obra e realizações de Korczak e divulgar as experiências teóricas e práticas baseadas em seu trabalho, nos vários países. A sua forma de atuação dá-se sobretudo mediante seminários, sessões, conferências, encontros e reuniões nacionais e internacionais. São importantes também as publicações que oferecem e os centros de informação e documentação que organizam. A Associação
Janusz Korczak do Brasil (AJKB) foi criada em São Paulo, no dia 10 de abril de
1984, por iniciativa da professora Josette Balsa, uma das fundadoras da Associação
em Genebra (Suíça). A maior parte de seus membros pertence à comunidade
judaica e a sua sede foi por muito tempo a própria Federação Israelita do
Estado de São Paulo; alguns 94
trabalhos são desenvolvidos diretamente com a União Brasileira Israelita do Bem-Estar Social (Unibes). Além deste caráter comunitário - provavelmente decorrente mais da forma como Korczak foi perseguido e morto do - que de uma improvável proximidade entre as idéias do educador e a religião judaica - outra característica marcante da AJKB é a sua opção por trabalhar com crianças e adolescentes carentes. Nesta perspectiva, a Associação tanto oferece assessoria a escolas públicas quanto desenvolve projetos de trabalho baseados nas idéias de Korczak em instituições de abrigo de crianças e adolescentes carentes (AJKB, 1991; AJKB, 1992; AJKB, 1993). Retomando os Pontos Principais Observando o modo de funcionamento do orfanato de Korczak e Wilczinska, notamos que vários dos elementos que conformam a disciplina das escolas tradicionais estão em pleno movimento: punição, arrependimento, premiação, categorização, observação contínua, acúmulo de informações a respeito de cada um. Esta observação deixa evidente que a disciplina operava com vigor naquele orfanato. O que não pode ser concluído assim tão depressa é que se trate do dispositivo disciplinar, como está sendo aqui trabalhado: dispositivo de moralização, que opera por meio da identificação com a norma e da submissão. Então vamos devagar na análise de todos estes elementos. Comecemos pela punição. Como vimos, ela era prevista e muitas vezes praticada no Lar das Crianças. Sua aplicação dava-se quando uma determinada conduta de um membro do orfanato - aluno ou professor - era colocada em dis- 95
cussão por todos, no "Parlamento". Nessa configuração estão ausentes os elementos básicos da punição como instrumento de submissão: a norma está constantemente em discussão, o poder está plenamente visível (a comunidade), não há uma hierarquização na distribuição das penas - todos os membros da comunidade podem ser tanto objetos quanto sujeitos da punição - e o ato questionado é sempre algo que prejudicou a comunidade, ficando excluídas quaisquer sanções a escolhas pessoais. Algo bastante diferente passa-se com a premiação, essa sim quase sempre relacionada com as condutas mais individuais. Lembremos: as crianças recebiam uma recompensa quando conseguiam desafiar a si próprias e modificar sua conduta. Isto significa que, apesar de as premiações não se restringirem à vida em comunidade como os castigos, elas também não se articulavam com um processo de sujeição, uma vez que sua ênfase estava na iniciativa do educando, no seu desejo de auto-superar-se, e não na avaliação de uma autoridade, que se valeria da comparação entre os comportamentos. Lembremos também que estas premiações só eram dadas como conclusão de um processo que tinha seu começo com a iniciativa da criança em procurar o diretor do orfanato e desenrolava-se numa relação particular entre ambos. Sem tornarem-se públicos, os prêmios também não podiam funcionar como instrumento de comparação, hierarquização e homogeneização das condutas, tal como acontece nas outras escolas. Mas havia
uma outra forma de categorização dos comportamentos: os plebiscitos.
Certamente esses funcionavam como um mecanismo de homogeneização, embora
devamos ressaltar que todos os membros da comunidade - mais uma vez alunos e
professores - estavam sujeitos a eles, e o seu resultado não implicava mudanças
na distribuição de poder, fatores que afastam o procedimento de um possível
instrumento de hierarquização. 96 Nesta mesma perspectiva devemos entender a função dos monitores de recolher o máximo de informação a respeito da vida pregressa dos alunos e a prioridade da tarefa docente de observar e anotar tudo a respeito do comportamento das crianças. O objetivo aqui era dotar Korczak do máximo de informações possível para a construção de suas teorias a respeito do desenvolvimento humano. Não havia neste movimento uma forma de centralização do saber nas mãos de quem detinha o poder já que, como foi assinalado, o poder pertencia ao "Parlamento". Está neste ponto a distinção definitiva entre a disciplina que operava no Lar das Crianças e o dispositivo disciplinador de normalização e submissão e que evidencia o seu caráter de resistência. No modelo escolar proposto por Durkheim, o poder fica invisível dando mostras constantes de que está disseminado por todos os seus mecanismos e referido a uma norma que deve ser obedecida por si mesma, fazendo com que os indivíduos se sintam sob constante vigilância. Já no Lar das Crianças, o poder pertence a toda a comunidade, são as regras - e não os indivíduos - que são constantemente examinadas, e as condutas individuais só são sancionadas quando prejudicam a coletividade. Vida coletiva sob direção do mestre e conformação aos enunciados de identidade e conduta instituídos inviabilizam, para Durkheim, a proposta de fazer da classe um tribunal que julgaria a conduta dos seus membros e que o mestre apenas presidiria. Proposta inconciliável com o papel dirigente do mestre. ( ... ) Mais ainda, a proposta implicaria que Durkheim reconhecesse as crianças como instituintes dos seus próprios padrões de sociabilidade, como criadoras ou participantes dos enunciados da vida coletiva partilhada. (Fernandes, 1994:187). 97
Pela configuração do Lar das Crianças, percebemos que Korczak deslocou o ponto enfatizado por Rousseau e Tolstoi: a questão que é colocada agora no centro das preocupações é a responsabilidade, e não mais a espontaneidade do educando, embora ele não a tenha negado (lembremos da postura dos professores, que deveriam aguardar a iniciativa da criança). Mas talvez isso explique o seu silêncio com relação aos pioneiros. Esse modo de funcionamento do orfanato, que dá mais espaço para a participação coletiva nas decisões, será instaurado em linhas gerais por todas as escolas democráticas que o sucederão, apesar de não ser explícita a influência de Korczak sobre os outros educadores desta linha. Não há também ligação entre a Janusz Korczak International Association e as escolas democráticas de todo o mundo, algo possivelmente explicável pela diferença de atuação de ambos os movimentos: se a Associação privilegiou a educação dos carentes, as escolas livres atuais são quase todas privadas, e portanto voltadas para os filhos das classes médias. É importante ressaltar que a experiência do orfanato de Korczak, os projetos das Associações, e a escola para os filhos dos camponeses de Tolstoi deixam claro que a proposta de uma escola democrática não é necessariamente elitista, como muitos críticos, sobretudo os da linha marxista, quiseram afirmar (ver por exemplo Ponce, 1978: 155-169 e Snyders, 1976)." Para
saber mais sobre "pedagogia radical" consulte a obra: SINGER, Helena. República de Crianças. Sobre experiências
escolares de resistência. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. |